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Julio Maria
Jornalista Cultural | Biógrafo | Crítico Musical | Músico
Terça-feira, 23 de julho de 2024
Pierre: "A rua desperta o lado selvagem"
Quem é e o que diz Pierre Rovian do Amaral, um dos mais de 80 mil sobreviventes das ruas de São Paulo: ‘A mudança pode começar com um banho’. ‘Quem rouba aqui perde a liberdade’. ‘A rua é um vício’
'Ventinho do Copan': nas noites frias, ele dorme sobre a ventilação | Foto: Julio Maria
Seu nome é Pierre. Pierre Rovian Duarte do Amaral. Ele tem 39 anos, é gaúcho, estudou psicologia e vive pelas ruas do Centro de São Paulo. Mas pronunciar a forma exata como a mãe o registrou em São Luiz Gonzaga, a noroeste do Rio Grande do Sul, parece tão urgente para ele quanto decidir detalhes que irão fazê-lo sobreviver ou não por mais uma noite, como onde dormir, o que comer, com quem conseguir algum dinheiro e em que local esconder a caixa de papelão em que guarda três peças de roupas usadas. É tudo o que tem. Ele a coloca atrás de um vaso de plantas que fica em frente a um restaurante, na entrada do Edifício Copan, e fala baixo. “Aqui, ninguém acha.” Ao dizer seu nome, Pierre projeta-se com vigor, como se o ato anunciasse a ele mesmo a sua inacreditável existência.
Pierre, com fala articulada e reflexão sobre o que vê ao redor, sabe tudo sobre a São Paulo temida, escura, suja, indesejada, violenta, faminta, silenciosa, pútrida, explícita e denunciativa. Aos prefeitos, ele está, por tudo isso, na mais inconveniente das estatísticas. Pierre e mais 80.368 pessoas vivem hoje revirando lixo, dormindo sobre papelões, pedindo comida nos faróis e esperando a madrugada para defecar em praças públicas sem o risco de serem linchados. Segundo levantamento do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua (OBPopRua), esse número subiu 24% nos últimos seis meses. Em dezembro de 2023, eram 64.818 seres humanos nessas condições.
Guilherme Boulos, candidato a prefeito de São Paulo pelo PSOL, apoiado por Lula, disse, em entrevista de pouco mais de dez dias atrás ao site uol, que sua prioridade, se eleito for, será resolver essa situação. E Ricardo Nunes (MDB), prefeito e principal oponente, alinhado a Bolsonaro, diz que quem vai resolver a situação é ele. A questão central de tanto cuidado com o tema pode estar além de uma solução eficaz para a vida de quase 100 mil pessoas sem abrigo: eleitor, vou limpar a cidade.
Gente que vive na rua não vota. Quem vota são as pessoas que se incomodam em vê-las. Por isso, a expressão “resolver a situação” é ambígua. Seria resolver a situação para as pessoas que vivem nas ruas ou para quem as vê? Só vale a resposta “os dois” se a ideia não passar por ações como desalojá-los, tirar-lhes os cobertores, encaminhá-los para abrigos ou melhorar os canis dos albergues (tudo isso já foi dito ou feito por um ou por outro candidato, obviamente, sem resultados).
Se tornassem Pierre Rovian Duarte do Amaral visível por uma hora e ouvissem o que ele tem a dizer, candidato e prefeitos poderiam conhecer algo mais do que dizem os números. Sobre retirar pessoas das ruas, ele diz: “Seria bom termos estações de banho em lugares públicos. O banho é a transição. Ele desperta a vontade de sairmos das ruas porque devolve a vontade de sermos alguém. O banho resgata as imagens que as pessoas têm de suas infâncias, de quando tinham uma casa. E isso traz para o nóia a transformação.” Sobre a origem de tantos moradores: “A maioria está saindo das penitenciárias sem destino. Vêm para o Centro, mas encontram uma cidade diferente da que deixaram.” Por que muitas pessoas que estão nas ruas resistem a sair delas? “A rua é um vício. É a liberdade.”
Pierre é um jovem de olhos bem escuros e fala atenta, rápido no raciocínio e crítico, mas sem autocomiseração nem raivas da vida. Sua mãe era prostituta e o pai, o dono das prostitutas. “Era o cafetão”, conta. Ele morreu em um acidente de carro quando Pierre tinha três meses. A mãe o mandou para a avó criar, na cidade de Santiago do Sul, a 550 kms de Porto Alegre, e desapareceu. Pierre concluiu o segundo grau e, com a ajuda da avó, estudou psicologia, mas não se formou por não se enquadrar nas exigências de uma faculdade. “Eu não conseguia entender os teóricos quando lia os textos. Acabei reprovando em todas as matérias.” Em busca de trabalho, mudou-se para Florianópolis e descobriu-se como vendedor de roupas e calçados trabalhando em lojas como Centauro, Pura Mania e Coach. “Eu vendia muito, a ponto de o gerente me usar como exemplo. Quando a pessoa chegava à loja, eu a observava e logo sabia qual era seu estilo. Não ficava analisando a meta de quanto deveria vender, mas a pessoa que estava ali.”
Um amigo de infância o chamou e ofereceu o cargo de gerente em outra loja. Os negócios estavam indo mal, quase fechando, com uma longa lista de clientes inadimplentes. “Em um ano e três meses, consegui renegociar a dívida de 270 pessoas. A loja que lucrava entre R$ 10 e R$ 15 mil por mês teve um crescimento de 330% e passou a vender R$ 55 mil”. Mas, diz Pierre, o mesmo amigo cortou a comissão que eles haviam combinado e a amizade foi rompida. A avó morreu por esse tempo e seu pesadelo começou.
Pierre chegou a São Paulo em 2022 e ficou oito meses pelas ruas. Começou a usar cocaína, MD, crack, maconha e o que aparecia. Uma irmã policial militar, Viviane Amaral, o viu por acaso, quando assistia TV. Ao fundo, na imagem, Pierre caminhava maltrapilho pela Cracolândia. Disposta a encontrar o irmão, ela saiu de Santa Cruz do Sul, no interior do Rio Grande do Sul, percorreu 1.132 quilômetros e chegou a São Paulo. Conseguiu convencê-lo a ser internado em uma clínica de reabilitação na cidade de Capão Novo, também no Rio Grande.
Pierre ficou na clínica por quatro meses, não suportou o tratamento com medicações que o apagavam o dia todo e voltou a viver nas ruas de São Paulo. Sua vida e sua fala são de um especialista em sobrevivência urbana, um enviado ao limite da existência, uma testemunha do Grande Fracasso. A realidade de Pierre transpassa de certezas cristãs a políticas públicas. “A rua desperta nossa face mais selvagem.”
Como é viver pelas ruas?
Só sabe quem está aqui. É muito diferente da visão que eu tinha quando eu era um cidadão normal que trabalhava, acordava tal hora, tomava um banho, cozinhava e saía de casa às 13h30 para o trabalho. A rua desperta um lado selvagem que você não imagina.
Como é isso?
Muitas pessoas que estão aqui crescem com a cultura do tirar do outro. Então, a lógica para elas é do quanto mais você me ajudar, mais vou tirar de você. Aqui em São Paulo, os oradores das calçadas chamam pessoas que ajudam outras de frango. Se você me dá uma caixa de bombom, eu peço algo mais e depois mais. Frangos não sabem dizer não. Quem pede olha uma pessoa que dá dinheiro e comenta com um outro: ‘Olha aquele rapaz, ele tem dinheiro. Vamos tirar mais dele?’. E então ele vai atrás de você para isso. Eu achava que as pessoas que eram ajudadas agradeciam por isso. Mas não, elas querem tirar mais.
Como você descobriu isso?
Eu descobri ajudando. Quando cheguei a São Paulo, ajudava outras pessoas com o que eu tinha. Em outros casos, quando precisava de dinheiro, aceitava levar turistas que estavam hospedados no Centro para comprarem drogas na Cracolândia. Uma dessas pessoas era uma colombiana que estava hospedada em um hotel aqui perto do Copan. Ela comprou R$ 100 reais de drogas e saiu toda feliz, mas percebi que alguém nos seguia. Ao chegar em frente ao Bar Brahma, ela me deu R$ 5 e se despediu. O rapaz se aproximou rápido, tirou a faca e pediu tudo o que ela tinha. Um outro comparsa apareceu e passou a vasculhar os bolsos da moça, mas os dois acabaram se esquecendo de que ela estava segurando os pertences com as mãos que estavam para cima.
Você já roubou?
Eu tive problemas no passado, quando furtei bolachas de um mercado, mas tive de superar isso para estar nas ruas.
O que faz você não roubar?
Eu entendi que preciso ter liberdade para morar nas ruas. E quem rouba perde a liberdade. Eu não posso roubar e dormir nas calçadas. Uma vez, vi uma cena que me fez entender isso. Era um cara que roubava muitos celulares. Ele estava na Cracolândia, bem à minha frente. Apareceu um homem e o matou com dois tiros. Esse homem disse que estava há duas semanas procurando quem havia roubado seu celular. Quando achou, o matou na hora. Eu vi o rapaz estirado no chão. Isso reforçou meu pensamento. Não roubar para ser livre.
O que leva uma pessoa para a rua?
Para muitas, a liberdade.
Existe um prazer em estar na rua?
A rua é um vício. Mesmo sem trabalho, com chuva e frio, ela se torna um vício. Você consegue tudo o que você precisa. Ajuda de pessoas, comida, roupas. Isso pode ser viciante.
De onde vem a maioria das pessoas que vivem nas ruas?
Grande parte são ex-presidiários. A maioria. Chegam todos os dias. Eu sempre pergunto de onde vêm e a maioria responde que estava presa. Chegam mostrando o alvará de soltura e parecem estar felizes com isso, mas logo percebem que a cidade não é mais a mesma que existia quando estavam soltos. Outras vêm depois de passarem um tempo nas clínicas de reabilitação. Eles chegam bem nutridos, mas em pouco tempo voltam a fazer o que faziam antes. Conto nos dedos as que têm problemas mentais. Essas não sabem quem são, de onde vieram. Muitas vezes, nem usam drogas. Aí não tem muito o que fazer. Apenas nesse caso, parece que deveriam ser conduzidas a tratamento contra a vontade, mas creio que não se pode mais fazer isso, né?
O que já fizeram com você nas ruas?
Uma vez eu estava dormindo em frente ao mercado Oxxo, da Rua da Consolação. Dormia pesado quando acordei com um chute no nariz. Era muito sangue e eu só gritava de dor. O rapaz que me chutou estava super bem-vestido e eu perguntava por que ele havia feito isso. Ele dizia apenas: ‘Não te vi’. Até onde vai a maldade de um rapaz que é feliz vendo o outro sangrando à sua frente? Mas houve uma noite em que eu quase morri de frio. Eu tinha certeza de que iria morrer. Chamei as pessoas para me levarem a um albergue. Meu peito começou a doer muito, comecei a tremer e não sentia mais algumas partes do corpo. Eu buscava o ar e o ar não vinha. A oxigenação do cérebro foi diminuindo. Foi terrível.
Por que de dia há tantas pessoas completamente apagadas nas calçadas?
O crack provoca esse apagão. Um dia eu segurei minhas pernas e minha mente para não deitar na rua. Eu não conseguia caminhar. Consegui controlar meus pensamentos para chegar a uma área segura, um lugar em que não passasse carros e as pessoas não me chutassem. Eu já cheguei a ficar dois dias sem dormir, mas conheço pessoas que ficaram oito por causa do crack. Elas roubam um celular, conseguem vender na Cracolândia e compram muita droga. E, antes que acabe, eles roubam de novo e compram mais. São muitos dias se drogando. Há pessoas que alugam um quarto de hotel e ficam sete, oito dias usando drogas. Quando acaba tudo, vem o apagão.
O que acha dos projetos da Prefeitura para retirar as pessoas das ruas?
Se eu fosse o prefeito, colocaria as tendas (banheiros) de volta. A higiene desperta nas pessoas a vontade de sair das ruas e começa a tornar você um cidadão de novo. O banho é a transição. Em vez de pegar as pessoas e tentar levá-las para outro lugar, o banho e a higiene despertam nelas a vontade de fazer isso por si, porque devolvem a elas a vontade de ser alguém. Já vi pessoas que saíram das ruas depois de começarem a tomar banho.
Vocês não têm banheiros químicos?
São raros. Veja, as pessoas recebem três alimentações nos albergues. Se é assim, elas terão, naturalmente, de fazer suas necessidades em algum lugar, mas não há lugar para isso e elas acabam usando as praças, as ruas. Por que não investir em banheiros com seguranças por perto para ninguém roubar os materiais. Por usarmos os mesmos lugares nas ruas, não há mais como limpar a cidade, porque o cheiro fica impregnado de uma forma que não sai mais.
E como são os albergues?
Quem está de fora diz, ‘tá ótimo’. Mas, veja, às vezes é um pão com uma salsicha e um café. O rapaz que está na rua ganha bolacha, salgadinho, lanches. Ele acaba comendo melhor nas ruas do que nos albergues. Eu já fui a um local desses em que uma funcionária servia com tanta má vontade e tão devagar que muitos foram desistindo de comer. Era como se ela estivesse fazendo isso de propósito. Havia mais ou menos umas 40 pessoas na minha frente. Ir para os albergues é para quem está muito cansado, doente ou com algum problema de saúde.
Você se relaciona com mulheres nas ruas?
Isso é um problema. O corre das mulheres é quase sempre o de fazer programas. Então, quem sai com elas corre muito risco. Os bandidos consideram que elas são propriedades deles. Se te virem com essas mulheres, vão passar a real ou te dar uma facada. Os ladrões são sultões das ruas. Todas as mulheres são deles, mesmo as que querem ficar com você.
Você teve alguma relação afetiva nesses anos de rua?
Não, nenhuma vez. Estou em abstinência desde que cheguei aqui.
O que dói mais para quem vive nas ruas?
Só chorei três dias. Em um deles, eu pedi uma bolacha para uma pessoa que estava com o pacote cheio nas mãos. Ela me olhou com um olhar que pareceu queimar a minha alma, comeu a bolacha e jogou o saco ainda cheio em um bueiro para não me dar. Em outro, eu pedi um cigarro. A pessoa deu uma tragada no que estava fumando e jogou a parte que sobrou no chão. Ela pisou com força para não sobrar nada. E, dia desses, eu pedi os restos de um prato de comida que estava na mesa de uma padaria. Os clientes já estavam pagando a conta. Um garçom veio para me dar, mas chegou um outro e disse que havia uma lei que não permitia mais que doassem comida para as pessoas. Ele pareceu ter prazer em fazer isso. O outro discutiu com ele, mas veio o dono e disse que não daria mais porque agora é lei (em junho, a Câmara Municipal de São Paulo aprovou, em primeira votação, um projeto de lei que prevê multa de R$ 17 mil a quem descumprir determinados requisitos sobre doação de alimentos a pessoas em situação de rua na capital).
O que é pior? Quem não olha em seus olhos ou quem olha e o despreza?
A indiferença de quem não olha dói mais. O olhar de desprezo, pelo menos, é um olhar.
Julio Maria
Criança cresceu sem os pais no interior do Rio Grande do Sul / Foto: Arquivo pessoal